Quando decidi que morreria, senti um alívio imediato.

A gritaria no quarto 303 foi ouvida por todos que perambulavam pelo corredor naquela noite insuportavelmente quente. Minha dor, que ultrapassava o limite do tolerável­, claramente irritou as enfermeiras, qu­­e deixaram de me tratar com dignidade logo nas primeiras horas de trabalho de parto. É claro que a irritação da equipe não foi espontânea. Quando entrei na sala, com a bolsa rompida, fui recebida com sorrisos e muita animação por todos que conduziriam meu parto. Eu estava calma, dentro do possível e do permitido para uma mãe de primeira viagem. Minha preocupação era com a criança, que estava retorcendo violentamente meu útero. Em silêncio, pedi para que ela esperasse um pouco mais para colocar os pés neste mundo:

- Espere só mais um pouco, minha querida. Seu desespero passará logo. Isso não vai demorar. Eu prometo. Em breve, estaremos juntas.

Meu desejo era que meu marido estivesse comigo naquele momento. Mas, as coisas não aconteceram como eu esperava. Assim como nada na minha vida aconteceu. Aos 19 anos, eu me tornaria mãe, embora eu não tivesse tido uma. A mim, faltou mãe, pai e irmãos, pois quando nasci já não havia mais ninguém aqui, todos morreram. Foi somente por pressupor que minha história de vida era dolorosa demais que eu cheguei a acreditar que Deus me concederia aquele pedido. De inocente que eu era, não percebi o óbvio da nossa relação: Deus tem uma mania incontrolável de me contrariar. Um dia hei de confrontá-lo sobre isso, há de haver alguma explicação para tamanho desagrado. Naquela noite, mais uma vez, Deus me trapaceou e as coisas desandaram completamente. Meu marido nunca chegou para o parto, muito menos para a amarga vida que eu teria.

Quando entendi que ele não chegaria e notei que aquela criatura não demonstrava compaixão alguma para comigo, me rasgando por dentro para pôr os pés no mundo, não suportei ser mãe. Passei a reagir como um animal encurralado. Me debati, tentei fugir, tentei matá-la dentro de mim dando socos na minha barriga. Uma reação inesperada demais para todos naquela sala e assim, o parto, que deveria ter sido um momento sublime, transformou-se em caos. Os sorrisos deixaram de existir, a fala mansa perdeu lugar para gritos de reprovação e violência

Quando ela finalmente saiu de dentro de mim, eu, exausta e sozinha, recebi a notícia que mudaria minha vida: encontraram o corpo de meu amado nu, dentro de um dos quartos do puteiro da cidade, cravado em seu olho direito estava o salto do scarpin vermelho verniz de uma das trabalhadoras do local, nas suas costas as marcas de unhas em carne viva. Era Deus me trapaceando mais uma vez!

Na ligação que recebi da polícia militar, explicaram-me a cena do crime. Compreendi a gravidade da situação quando em tom quase imperceptível de deboche me contaram os detalhes: meu amado não foi capaz de morrer decentemente, seu corpo fora encontrado com a bunda descoberta e um acessório erótico introduzido em seu ânus. Sangrou até a morte com um butt plug enfiado no rabo, no chão de um puteiro. Tudo isso enquanto eu paria a nossa filha. E foi naquela noite, em que parir deveria ser algo mágico, que meu coração passou a desejar a morte.

Com uma filha recém-nascida, sem família,  emprego, marido nem coragem de olhar para os vizinhos. Este era o novo cenário que Deus cuidadosamente preparou para mais uma vez me contrariar.

Ao ler os jornais, compreendi que minha vida jamais seria a mesma. Virei chacota na cidade, e para contornar esta vergonha precisei aprender a conter meus instintos e vontades. Passei a me comportar como uma mulher discreta, calada, com sorrisos curtos e respostas amorosas. Jamais me deitei com outro homem, me tornei frígida para agradar a sociedade. Criei minha pequena, eduquei, acariciei seu rosto enquanto ela chorava. Fiz tudo isto para que ninguém jamais percebesse a mágoa que havia em mim. Não ousei revelar o que sentia nas terapias ou durante as confissões na igreja, ocultei qualquer indício sobre meus verdadeiros sentimentos, ninguém entenderia.

Enquanto me anulei, o tempo passou, Clarice se formou e encontrou o marido ideal (leia-se um marido com excelentes recursos financeiros). Então, foi enquanto olhava pela janela do enorme apartamento, que pertencia a minha filha, no 14º andar de um edifício luxuoso na principal avenida da cidade, que pedi fervorosamente para que a morte viesse me buscar. Morrer. Era isso que eu pediria a Deus. Como Ele sempre foi bom nisso, eu tive certeza de que Ele me concederia esse pedido. Foi então que percebi que meu peito, antes insuportavelmente apertado – igual a calçar um sapato social que esmaga constantemente o minúsculo calo no dedinho do pé esquerdo –, sentiu-se completamente aliviado. O problema é que o alívio passou rápido, e após ter retirado de meu peito sua característica dor incessante – similar a retirar aquele maldito sapato depois de oito horas infernais de tortura – minha mente passou a ter outra preocupação: se Deus vai ouvir meu pedido, preciso me certificar de que ele fará as coisas certas.  Criatividade. As mortes que cercaram a minha vida foram cheias de criatividade, a minha também deveria ser.

Era Réveillon e estávamos na cobertura de Clarice. O local estava repleto de velas aromatizadas e flores, uma mesa grande preenchia a sala de jantar, os pratos ainda estavam vazios, pois todos aguardavam ansiosos o relógio marcar meia-noite para se servirem das delícias preparadas. Mais do que celebrar a chegada de um novo ano, todos os presentes estavam ali para bajular minha filha, ela que, diferente de mim, havia conseguido o casamento perfeito e duradouro, fazia questão de todos os anos receber seus amigos em seu apartamento com vista para o mar. Estávamos na sala, ansiosos pela comida, quando ela surgiu deslumbrante, como sempre. Carregando alguns potinhos de romã em suas mãos, me explicou, animada, o ritual para atrair prosperidade, amor e felicidade para o próximo ano, enquanto isso eu só conseguia pensar em morrer. Morrer, para mim, não seria difícil, mas seria impossível agradar a Clarice com a minha morte. Ela que sempre fora extremamente egoísta e intransigente e que Clarice passou a vida toda a me exigir atenção, amor e cuidados ininterruptos. Ela que sempre se fez de vítima por não ter conhecido o seu pai, jamais notou o meu sofrimento.

A certeza de que ela não me daria sossego após minha morte e me procuraria em todos os centros espíritas, terreiros ou igrejas, me causava desespero. Tive um forte embrulho no estômago ao imaginá-la chorando nos ombros de seus amigos ao lado do meu caixão, comentando sobre a minha crueldade ao deixá-la. Ingrata, até na minha morte ela seria a protagonista!

Desde o nascimento de Clarice minha alegria em viver não existia. Longos e amargos anos de espera, mas o momento finalmente aconteceu. Às 00:00 do dia primeiro de janeiro deste ano, a Morte veio até mim como uma bela e tardia surpresa. Tenho certeza de que Ela deve ter escolhido a data e a forma como me levou como um pedido de desculpas pela demora.

Na cobertura, os convidados estavam eufóricos pela chegada do novo ano. Enquanto todos esperavam pela ceia, Clarice insistia para que eu comesse a romã em uma delicada xícara. Sempre muito animada, ela me explica pela 30º vez a importância de se comer romã naquela data. Eu nunca acreditei em superstição ou simpatia, mas passei anos ignorando minhas crenças para viver as dela, por isso não consegui dizer não ao seu pedido. Enfática, ela dizia que comer aquela fruta sem graça faria com que eu tivesse mais prosperidade e felicidade, no próximo ano.

Para que ela parasse de falar enfiei um punhado dentro da boca e engoli com tanta raiva que tive que me conter para que ela não percebesse. Sorri para disfarçar pois Clarice me olhava atenta. Ao me ver sorrir ela imediatamente se alegrou: eu estava fazendo mais um de seus gostos. Se afastou de mim e foi em direção ao seu marido, (que agora já estava velho, barrigudo e sem paciência alguma para seus luxos e frescuras) ao encontrá-lo o beijou longamente com os braços entrelaçados em seu pescoço. Pude perceber de longe a rejeição que ele lhe ofereceu. Foi em uma fração de segundos que engasguei com a fruta que ela havia insistido para que eu chupasse.

Sentindo falta de ar e com o fruto entalado na garganta quase me desesperei, só quando notei que era a Morte vindo me buscar, comecei a tentar aceitar. Senti seus braços me abraçarem por trás, braços longos, gelados e fortes, tentei me debater por instinto, mas a força invisível que me prendia se quer se abalou com meus movimentos bruscos e afoitos, senti as mãos gordas e geladas em meu ventre, me debati e ao tentar gritar, senti as garras cortarem em volta do meu pescoço penetrando minha garganta tão fortemente, que entendi que qualquer movimento seria em vão. Quando me acalmei, ouvi o sussurro em meu ouvido dizendo:

- Espere só mais um pouco, minha querida. Seu desespero passará logo. Isso não vai demorar. Eu prometo. Em breve estaremos todos juntos.

Compreendi que era chegada a hora. Faltou-me completamente o ar. Deixei que tudo acontecesse sabendo que seria impossível parar a Morte. O som alto, os fogos de artifícios, os cachorros latindo, as palmas e risadas vindo da sacada da sala, a euforia pela comida e pela chegada de um ano novo, não permitiram que alguém percebesse que eu estava morrendo. Que ironia da vida, após anos pedindo pela morte, engasgo com o fruto da prosperidade.

Rapidamente, a festa foi trocada pelo velório. Ao invés de velas aromáticas, o cheiro de cemitério está no ar. A mesa farta perdeu o seu lugar para o meu caixão. As mulheres, antes deslumbrantes e maquiadas, passaram a vestir preto com a face pálida. Agora, dá para perceber claramente as olheiras e as marcas de expressão em seus rostos. Há flores por todos os lados, Clarice sabe que detesto, elas atacam minha rinite mas mesmo assim elas estão lá, não foram escolhidas para me agradar, mas para satisfazer aos gostos dela. A ceia farta foi trocada por bolachas e bolinhos em uma bandeja de plástico verde limão, que ficou no canto da sala. Não há nada neste lugar que me agrade, tampouco as pessoas que choram em cima de mim, porém nada atrapalha minha satisfação. Finalmente, no caixão, tenho um sorriso sincero no rosto e sou observada com aparente ternura, percebo que somente agora tenho a atenção que merecia. Me anulei a vida toda para ter migalhas de atenção dentro de um caixão.

Mas valeu a pena. Ah, eu amei a morte e a maneira como ela veio me buscar e tenho absoluta certeza de que Clarice sofrerá e muito.

Para mim, alívio. Para eles, um eterno pesar e uma festa interrompida. Para todos uma fatalidade, um acidente; para mim, uma longa programação; e para ela, a culpa de ter me oferecido a fruta que me matou. Hoje, Clarice finalmente sofre. Ela, que ao nascer me fez viver, todos os dias, para satisfazer seus gostos, a partir de hoje viverá a amargura e a tristeza de ter sido a causadora de minha morte. Vai passar a vida a se culpar e é claro que todos tentarão confortá-la dizendo que foi uma fatalidade, ainda bem que isso não irá aliviar o seu arrependimento.

Quando a Morte me sufocou, compreendi que com Clarice ficaria toda a culpa. Enquanto todos comentam sobre meu amor por minha filha, minha vida regrada e recatada e tentam consolá-la, eu me alegro ao vê-la sofrer. Em volta do meu caixão há um bando de hipócritas que nunca me perguntaram se eu era feliz. Enquanto Clarice lamenta a minha trágica partida, eu fico feliz ao vê-la enlutada e culpada. Sim, poderia ter vivido mais, minha saúde e a mente estavam boas, mas eu jamais seria livre, visto que ela era a minha carcereira, a minha egoísta e mimada filha. Clarice nunca olhou para meu coração e por isso desejo que ela viva com a eterna culpa da minha morte – espero que essa culpa seja como a dor de se ter um calo, no dedinho do pé esquerdo, e não poder retirar o sapato. Insuportável.