Me deixe! Pediu mais uma vez.

Desta vez não soou como um pedido. O tom de voz alterado revelara que havia chegado ao limite.  Imediatamente olhou  ao redor para garantir que não a ouviram e ao constatar que não havia ninguém ao seu lado, suspirou aliviada.

-Que bom, assim não preciso explicar nada para ninguém.

Caminhou devagar para evitar que os sapatos machucassem ainda mais os seus pés, sentiu que não suportaria mais uma dor. Era melhor poupar os pés, uma dor a menos, só assim sobreviveria. Desejou chegar em casa para descansar e assim ter um pouco de paz. Quem sabe hoje, após o banho...

Mais tarde em seu quarto escuro, deitada na cama refez o seu pedido. Desta vez com a coberta sobre o corpo e o rosto colado ao travesseiro implorou: Me Deixe! Me deixe em paz, pelo amor de Deus. Sem conseguir evitar que as lágrimas deslizassem em seu rosto revirou-se na cama, cansada e impotente. Sim ela conseguiu evitar que seus pés se machucassem e evitou tanta coisa durante aquele dia que conseguiu fugir dos problemas, pagar as contas, fazer as compras, lembrar dos aniversariantes, concluir suas tarefas e ainda, dedicar seu tempo aos  problemas dos amigos. Ela fez tudo e ainda assim não fora suficiente.

A voz ininterrupta em sua cabeça não a deixava em paz e sem poder desabafar com ninguém, pois ela sabia que jamais seria entendida [aquela maldita voz não era percebida pelos outros]. Como poderia explicar que seu cansaço e desespero vinham de sua mente? Inútil.

Adormeceu implorando: Me deixe em paz! Me deixe em Paz.

Ao ouvir o barulho do relógio, sinalizando que era hora de acordar, seu corpo exausto arrastou-se para conseguir sair da cama. Sim, ele resistiu fortemente ao desejo de permanecer naquele quarto e seguiu até seu guarda-roupa para preparar-se para mais um dia.

E assim caminhou pelas ruas, como quem não sentia nada. E ao entrar pelo corredor do escritório fez o que fazia todos os dias: sorriu!  Ao vê-la a simpática recepcionista que a recebia todos os dias pela manhã, com toda sua gentiliza lhe disse: Me alegra vê-la sorrindo. Tenha um bom dia! Retribuiu a gentileza e desejou o mesmo para ela. Entrou no elevador e pensou:

Hoje quem ganha sou eu. Se não me deixas em paz, há de me deixar ao menos sorrir. E sentiu que venceria.